13.6.08

Casos: Beijo Sabor Uva

Eu jogava bola na rua. Não lembro ao certo como tinha ido parar lá, e como conheci todos aqueles meninos, mas ali estava eu quando eu a vi pela primeira vez. Passeando com sua cachorrinha pela travessinha de paralelepidos que cortava o quarteitao do nosso campo-rua. Ela era muito mais velha, com uma cara não muito de simpática e andava fingindo que não via nada nem ninguém ao seu redor. Eu também fingi não reparar nela e continuei o jogando.

Naquele época era normal nos ficarmos jogando desde as duas da tarde até sete, oito da noite, horário do jantar e da novela. Todo dia era a mesma coisa. Uma semana depois desse primeiro encontro, ela voltou a aparecer. Dessa vez sentou na calçada e assistiu ao nosso jogo. Eu era novo por lá e precisava descobrir que ela era.

Tati, filha do dono do Escort cinza. Ela era nova na rua, estudava no colégio público que ficava a uns dois quarteiroes da nossa rua, ela namorava e se não bastasse isso, tinha um menino do colégio que sempre voltava com ele, Thiago, grande, gordo e bobo. Ela se mudara a pouco tempo de São Bernardo do Campos pra cá com o pai depois que ele se casara de novo. O namorado dela dirigia uma ranger cinza e aparecia nos finais de semana pra levar ela pra sair. Eu tinha uns quatorze anos, ela dezenove. Eu nunca tinha beijado na boca, ela vivia enfiada naquela ranger com aquele namorado que eu nunca vi saindo do carro. Ela era uma daquelas garotas que emanam tudo, menos virgindade. E ainda tinha aquele pretendente gordo idiota. E todos meninos da rua ainda queriam beijar ela. Ótimo.

Deixei qualquer idéia vinculada a ela de lado. Um sorriso, um bom dia e um carinho na cachorrinha, era isso e só. Na época, eu pegava no gol, por preguiça e por nunca ter gostado muito de futebol, até ser escalado para o grande jogo. Um contra. Nossa rua contra a rua do gordo. Ninguém da nossa rua gostava dele e a chance de humilhar ele e os amigos bobos dele numa partida parecia perfeita. Essa foi a época em que a Tati saia mais na rua e todos meninos conversavam com ela. Eu ainda meio de canto trocava meia dúzia de palavra, sem nunca querer perder meu tempo com ela.

Dia do jogo. Cinco minutos de partida e eu já tinha tomado três gols. Queriam me matar. Invés da minha vida preferiram me tirar do jogo. Fui sentar na arquibancada para assistir o jogo e lá estava ela. Foi ai que eu me perdi. Nós ficamos sentados conversando durante as duas horas de aluguel da quadra. Voltamos pra rua conversando na frente do grupo (que infelizmente perdera a partida) e ainda sentamos no degrau na frente da casa dela conversando. Foi a primeira vez que eu vi o pai dela. Apelidei ele, carinhosamente, de Donkey Kong. Ele me odiava. Talvez a maldição começou ai. Mas ficamos nessa de conversar sempre.

Abandonei minha vida futebolística por hora para ficar sentado na rua conversando. Era chegar de casa e ficar no degrau conversando horas. Ela tinha um certo charme rebelde e revoltada que eu me apaixonei. O ar de sempre revolta, o ódio contra o pai, o desdém com o namorado, o jeito como ela acabava com o pretendente gordo dela e o jeito como nós ficavamos conversando. Eu era bobo por ela. Nos trocavamos cds do legião urbana, nirvana, pearl jam e ela ainda me ensinou muitas outras bandas que eu aprendi a gostar. Mas de resto nada. Eu era o amigo mais novo dela. Até o dia do passeio.

Eu estava deitado na sala como de custume após o almoço. Eu ficava assistindo chaves, só com a bermuda do colégio deitado no chão com os pés em cima da mesa central. A campainha tocou. Não eram nem uma hora direito. Apareci na varanda e lá estava ela no portão da frente com sua cachorrinha me chamando pra uma passeio. Botei minhas calças largas , meu moleton surrado, meu tênis de skate e voei pro lado dela.

Roubei um babaloo de uva na venda do meu avo e demos uma volta. Paramos na ladeira da casa dela. Era quase duas horas. Ninguém estava jogando bola, deveriam estar empinando pipa ou alguma coisa parecida. Estava aquele frio que diminui conforme a intensidade da luz do sol. Nós ficamos parados olhando um para o outro. Eu pus a mão na cintura dela. Eu estava numa enclinaçao que me deixava mais alto que ela. Ela riu. Eu me aproximei. Aquele silencio. (Ainda ouço esse silencio sempre quando vou ficar com alguém) Tudo fica quieto. Surdo. Um infinito. Eu sinto meu coração. Me aproximo. Fecho os olhos. Escuro, silencio, infinito, eterno, meu primeiro beijo. Com gosto de babalu uva.

Nós nos despedimos com um beijo no rosto, quando virei a esquina dei uma cambalhota de alegria. Fui para a aula de judô, voltei para casa, e fiz planos de ficar com ela para sempre. Nunca mais beijei ela depois daquele dia. Eu não sei porque mais eu fiquei uns dias sem ver ela, me perdi com os meninos no futebol e nossos vandalimos pré-adolescentes na rua. Depois descobri que ela estava ficando com o gordo e que o cara da ranger cinza aparecia cada vez mais na rua. Uma garota mais velha e com namorado. Não demorei muito pra esquecer ela. Na verdade uns dois meses depois eu me juntei na campanha da rua para infernizar a vida dela.

Encontrei ela esses dias na rua. Engordou, muito, foi expulsa de casa e vive freqüentando uma boca de fumo com uma galera alternativa demais do bairro. Uma pena.

Um comentário:

  1. "Tudo fica quieto. Surdo. Um infinito."

    Muito bom!
    E juro que não é porque tem a palavra "surdo" no meio. É porque ressoa em mim.

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